Além do capital simbólico
Prestes
a completar 111 anos de história, o Comércio do Jahu se tornou em maio um dos
centenários que recentemente fechou as portas no país. Fundado em 31 de julho
de 1908, o jornal cobria os acontecimentos da região de Jaú, cidade de 120 mil
habitantes no interior do estado de São Paulo. Foi encerrado de forma dupla.
Suas versões impressa e online chegaram ao fim e, 5 de maio de 2019. A edição especial de
encerramento se dedicou a destacar o patrimônio construído pelo
Comércio do Jahu em pouco mais de um século e seus laços com a comunidade. O
público manifestou pesar pelo fim do jornal em depoimentos de leitores,
anunciantes, colunistas e repórteres.
“O Comércio sempre acompanhou,
ao longo de todos os anos, a vida política, cultural, social e esportiva da
cidade. E se tornou patrimônio de Jaú, referência em informação, para o
município e a região. Como jornal local, com circulação nas cidades
circunvizinhas, era essa a principal cobertura, com análise. A população se viu
órfã do trabalho realizado pelo Comércio”, diz Ana Karina Victor, diretora de
redação do jornal pelos últimos 13 anos.
Encerramento em meio às dificuldades
A
decisão de encerrar o Comércio do Jahu se deu após o jornal passar cerca de
quatro anos com dificuldades para se manter, contou ela. Várias soluções foram
discutidas entre a redação e os proprietários do jornal, como manter as edições
impressas, porém com menor periodicidade, e até acabar com o impresso, mas
manter o jornal online. No entanto, os proprietários acabaram decidindo
encerrar de vez as atividades do Comércio, pontua Ana Karina.
“A situação não é diferente do
que ocorre com outros veículos de comunicação. Um número menor de pessoas que
se dispõem a comprar o jornal na banca, fazer assinaturas do impresso ou
digital. Além do mercado retraído de publicidade”, principalmente no interior,
argumenta.
“Um número menor de pessoas que se dispõem a comprar o jornal na
banca”
“Abre
um vácuo sempre que um jornal fecha. Abre mais um espaço no deserto de
notícias. No caso de jornais centenários é um abalo muito maior”, diz Marcelo
Rech, presidente da ANJ, ao Knight Center. Para ele, o grande ativo de qualquer
empresa, seja ela jornalística ou não, é a confiança. E essa relação é algo que
os jornais centenários tiveram um bom tempo para construir com seus leitores.
“Quando a gente fala de informação, ter 100 anos de história ou mais é um
ativo, é um patrimônio que estabelece uma relação de confiança raríssima”,
pontua Rech.
A pesquisadora Hérica Lene
observou em sua pesquisa que, de fato, esse patrimônio dos jornais centenários
ajuda a mantê-los funcionando e os diferencia de outras publicações. “Esse
capital simbólico é muito importante em termos de valorização do jornalismo
enquanto local de checagem, de informação. As pessoas confiam nessas marcas,
que carregam essa credibilidade” cultivada ao longo de décadas, diz.
“Abre um vácuo sempre que um jornal fecha. Abre mais um espaço
no deserto de notícias”
No
entanto, essa não é uma garantia de sobrevivência, como demonstra o caso do
Comércio do Jahu. O que esses jornais enfrentam é “uma crise do modelo da
indústria jornalística”, ressaltou a pesquisadora. Segundo ela, um traço em
comum aos jornais centenários analisados é a dificuldade de manter a edição
impressa. Algo que deve “pelos custos e pela concorrência com o conteúdo da
internet”. Além de equipes reduzidas em redações — que já foram mais povoadas
do que são hoje.
A pesquisa de Hérica Lene
também apontou que a maior parte destes jornais têm como foco a cobertura
local. Para isso, aposta-se na proximidade com a comunidade em que estão
inseridos. “Eles tentam dar um enfoque bastante regional [na cobertura], porque
o jornalismo online dá o nacional e o internacional. E a valorização do
regional é o que ajuda a sustentar esses jornais”, observa.
Tradição e fidelidade
O
centenário Correio do Povo, que tem sede em Porto Alegre e já leva 124 anos
como um dos principais jornais do Rio Grande do Sul e do país, é um exemplo
dessa valorização do regional identificada por Herica Lene em sua pesquisa. No
caso, o jornal se dedica com especial atenção à cobertura do que acontece no
Rio Grande do Sul e faz a cobertura nacional a partir do ponto de vista gaúcho.
Telmo Flor trabalha no Correio desde 1986, ano em que o jornal voltou a
circular após dois anos sem ser publicado, e é hoje seu diretor de redação. Ele
diz que o Correio “é um jornal tradicionalíssimo, principalmente no interior do
estado, com uma profunda ligação com os leitores. A fidelidade aqui é enorme”.
Característica do público
Segundo
ele, trata-se de uma característica dos leitores do Correio, e de algo “também
muito típico do Rio Grande do Sul”. “Os gaúchos gostam de honrar seus traços
culturais. E acho que o Correio faz um pouco parte disso”. A tradição do
Correio é lembrada diariamente não só aos leitores, por meio de uma seção que
resgata o que saiu no jornal de 100 anos atrás, mas também aos colaboradores
que trabalham na redação.
“A gente costuma dizer que o
Correio tem uma ‘constituição’. Temos na redação um fac-símile da
primeira página do primeiro exemplar do jornal, lá em 1895, e tem um editorial
ali que é bastante moderno. É muita história, mas para nós é verdade, está ali,
dito. Somos apartidários, nós somos modernos… É uma tradição junto com
modernidade que é boa para o nosso negócio também”, comenta Flor. O jornal, que
é parte do Grupo Record de Comunicação desde 2007, teve circulação diária média
de 66.950 exemplares impressos (9º lugar nacional) e 41.326 digitais (8º lugar)
no primeiro semestre de 2019, segundo dados do Instituto Verificador de
Circulação (IVC) disponibilizados ao Knight Center.
“Temos consciência de que o que podemos oferecer de diferencial
no mercado é credibilidade”
O
Correio tem sua receita “cada vez mais vinculada diretamente ao leitor”, afirma
Flor, com assinaturas e vendas avulsas igualando a publicidade como fonte de
divisas para a publicação. E também aqui a história do jornal desempenha um
papel.
“Cada vez mais temos
consciência de que o que podemos oferecer de diferencial no mercado é
credibilidade, e que não é uma credibilidade conquistada ontem ou anteontem com
alguma matéria. É uma credibilidade de 124 anos e que, sim, parece meio
anacrônico, mas nós gostamos disso. Sabemos que as pessoas pagam o jornal por
gosto. Afinal, o sujeito tem por aí milhões de linhas de informação todos os
dias, de graça, pela internet. Por que ele paga aqui? Porque ele acredita no
jornal. Porque nós oferecemos um jornalismo de qualidade. Tentamos todo dia
honestamente fazer isso, e o leitor percebe. Passamos para o leitor essa ideia
de que estamos a serviço dele e tentando sempre fazer o melhor”.
“Passamos para o leitor essa ideia de que estamos a serviço
dele”
Estar
a serviço do leitor, para o Correio, significa estar presente não só em Porto
Alegre, mas em outras nove cidades do interior do Rio Grande do Sul. O jornal
tem correspondentes em Uruguaiana, Pelotas, Santa Cruz do Sul, Caxias do Sul,
Santa Rosa, Frederico Westphalen, Novo Hamburgo, Canoas e Santa Maria. Essas
bases “representam o nosso vínculo com as comunidades do interior também”, diz
Flor. Para ele, isso também é parte do legado de mais de um século do jornal. O
Correio aposta na tradição também em sua operação online. Segundo seu diretor,
o jornal busca preservar no ambiente digital o modo de fazer jornalismo que consolidou
o impresso.
“Dos jornalões, quem sobrevive no meio digital
com algum sucesso? O New York Times, o Wall Street Journal, o Zero Hora, o
Correio do Povo, O Globo. É quem tem história para contar. Ou seja, tem
credibilidade. E não é só porque eles são famosos, é porque também preservam
suas vinculações comunitárias. No nosso caso, acreditamos que temos que
preservar nossa vinculação com o sujeito da outra ponta, que é o leitor. E
tentamos todo dia fazer isso, imagino que com algum sucesso. A gente se
esforça”, ressalta.
Em busca da “geração entrante”
Nos
centenários que buscam também se consolidar online, a aposta é na proximidade
da relação com o público leitor, por meio de redes sociais, por exemplo, e em
produzir conteúdo para a internet em diferentes linguagens, constatou a
pesquisadora Herica Lene. E para uma publicação que nasceu e se consolidou em
uma era em que jornal era sinônimo de impresso, essa transição não é pouca
coisa.
“O desafio é falar com o
público mais jovem, porque os mais jovens não leem jornal de papel”, diz. “O
grande desafio deles é tentar atrair esse público, que lê pela internet e não
tem ligação afetiva com a marca do jornal nem com o papel. O público desses
jornais que gosta de jornal de papel está envelhecendo Como eles atraem os
jovens?”.
O pernambucano Jornal do
Commercio (JC), sediado no Recife, tem tentado responder a essa pergunta e
seguir se renovando após 100 anos de história, completados em abril desse ano.
O Sistema Jornal do Commercio de Comunicação, conglomerado de mídia
proprietário do jornal, tem também uma rádio, a Rádio Jornal, que opera no
Recife e em outros cinco municípios de Pernambuco. Manté, ainda, dois canais de
TV locais, a TV Jornal Recife e a TV Jornal Caruaru. Há, por fim, o portal
online NE10, onde está hospedado o conteúdo de todos os meios da empresa.
“O desafio é falar com o público mais jovem, porque os mais
jovens não leem jornal de papel”
“O
Jornal do Commercio é o principal. É a origem de tudo”, enfatiza Maria Luiza
Borges, diretora de conteúdos digitais do conglomerado. “Essa marca nos
referencia, mas a cada dia a gente está procurando trabalhar de forma
totalmente integrada”. Essa integração, que começou em 2016, significou o
compartilhamento de conteúdo entre todas as plataformas do Sistema, conforme
explica executiva.
Os profissionais da redação
produzem conteúdo para todos os meios. “Apesar de o jornal ser a grande
referência, porque é de onde vem a nossa marca, hoje a gente não consegue falar
mais, por exemplo, de um repórter do Jornal do Commercio, porque nada que um
repórter faz vai ficar restrito ao jornal”, disse ela.
Esse
processo levou à redução da equipe, com pelo menos dois momentos de demissões
de membros da redação nos últimos dois anos, admitiu Maria Luiza. E, segundo
ela, a operação do Jornal do Commercio, separada dos outros meios do Sistema,
ainda é deficitária. A receita do jornal, que se divide quase igualmente entre
publicidade e assinaturas, não cobre os custos de produzir “jornalismo com
critério” e sustentar a estrutura necessária para imprimir o jornal em papel,
afirma.
“A gente não consegue falar mais, por exemplo, de um repórter do
Jornal do Commercio, porque nada que um repórter faz vai ficar restrito ao
jornal”
“Se
não estivéssemos vivendo como sistema, a situação hoje seria muito mais
complicada. A capacidade de visualizar o Sistema Jornal do Commercio como órgão
único de geração de conteúdo foi que nos deu um fôlego para chegar onde chegamos.
Não estamos dando lucro, mas pelo menos aqueles anos de vultosos prejuízos
ficaram para trás”, comenta.
“Não estamos dando lucro, mas pelo menos aqueles anos de
vultosos prejuízos ficaram para trás”
Segundo
dados do IVC, o Jornal do Commercio teve no primeiro semestre de 2019 média de
circulação impressa diária de 15.792 exemplares (21º lugar no ranking nacional
de impressos medidos pelo IVC). A circulação digital teve média no período de
8.491 exemplares (1º lugar). O jornal é o único de Pernambuco a figurar nas
listas do IVC. A diretora de conteúdo garante que tem pessoas “com 20, 30 anos”
de assinatura do Jornal do Commercio, e que o jornal se preocupa em valorizar
esses leitores fiéis. Mas um dos principais esforços no momento é ‘cuidar das
novas gerações’”.
“Tem um fenômeno, que é muito
do nosso tempo, de uma geração entrante que tem pouca fidelidade ao jornalismo
de qualidade. Ela vai ler o que passar na timeline ou o que o amigo
mandar, seja por mensageiro, seja na timeline do amigo,
seja no Instagram da prima e por aí vai. Então é um mega desafio para a gente
conversar com esses entrantes, porque daqui a dez anos são eles que
teoricamente deveriam estar consumindo jornalismo de qualidade. E se a gente
não sensibiliza e não mostra pra eles que é duro fazer, produzir e trazer essa
informação de qualidade, a gente muito provavelmente vai ter o esvaziamento da
nossa audiência”, analisa.
“Tem um fenômeno, que é muito do nosso tempo, de uma geração
entrante que tem pouca fidelidade ao jornalismo de qualidade”
Nesse
esforço, o Jornal do Commercio prepara sua renovação digital e buscou ouvir
representantes dessa geração em grupos focais reunindo tanto jovens leitores do
jornal como “gente que nos lê acidentalmente, porque um link passou por acaso
na timeline deles”,
pontua Maria Luiza. O objetivo foi ouvir desses jovens “o que geraria valor
para a vida deles, o que podemos entregar que faça sentido para eles”.
Participando de projetos
Além
disso, o Jornal do Commercio tem buscado fortalecer sua operação online
participando de projetos financiados por Google News Initiative (GNI) e
Facebook Journalism Project. São iniciativas de fomento ao jornalismo por parte
das gigantes das plataformas digitais. O Jornal do Commercio é parte do
Comprova, projeto que reúne 24 veículos no combate à desinformação.
Participou
dos aceleradores de produção de vídeo e de notícias locais do Facebook. E
acabou de ser selecionado no Desafio de Inovação do GNI com um projeto de
verificação de fatos. “Temos tentado ir além das formas tradicionais de
financiamento. Temos ido atrás de projetos bem específicos porque ajudam nessa
travessia”, diz a diretora, em referência aos desafios simultâneos da geração
de receita e da produção de conteúdo online. “Como diz um amigo meu, são vários
pratos rodando e nós tentamos dar conta de todos eles. Ou é isso ou despenca
tudo, né?”, riu.
O ativo da marca centenária
Para
Marcelo Rech, da ANJ, jornais são “amálgamas da comunidade”. Ao longo de
décadas, eles criam uma “liga de pertencimento” à comunidade que acaba
transcendendo o produto comercial oferecido. No caso dos centenários voltados
ao jornalismo regional, esse aspecto se exponencia, pela extensão do tempo e
pela concentração do espaço da cobertura. O grande diferencial dos centenários,
destaca ele, é a “construção gradual, sólida, permanente, da credibilidade e da
confiança”. “Do ponto de vista da informação hoje, essa é a maior necessidade,
a maior demanda e o atributo mais reconhecido”, afirma.
Destacar a própria história na
tentativa de sensibilizar os leitores para a importância do jornal e seu legado
“nem sempre comove”, acredita Rech, que também é vice-presidente editorial e
institucional do Grupo RBS. “Já vender a noção de confiança, de reciprocidade,
de que ‘estamos aqui há muito tempo fazendo jus à confiança da comunidade e
estaremos aqui por muito mais tempo fazendo jus à comunidade’, é um ativo
único, relevantíssimo, inigualável. Não pode ser comprado na prateleira, não
está à venda. Uma tecnologia, a capacidade de divulgar informação mais rápida,
isso está na prateleira, eu diria. A confiança, a credibilidade, não. Isso não
se compra, isso se constrói”, disse ele.
“Uma tecnologia, a capacidade de divulgar informação mais
rápida, isso está na prateleira, eu diria. A confiança, a credibilidade, não”
E
embora as transformações no jornalismo e o imperativo do digital assombrem
meios impressos de todas as idades, os centenários têm inclusive uma
significativa vantagem nesse cenário, acredita o presidente da ANJ. “Nós não
estamos no ramo da impressão de papel. Estamos no ramo da produção de
informação confiável, cuja difusão se dá em diferentes plataformas, entre as
quais a impressa. Para nós, o que é fundamental é a marca estabelecida, e os centenários
têm uma vantagem, porque são marcas muito estabelecidas, muito enraizadas. E o
reconhecimento da marca é o grande ativo da relevância”.
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